Agressões psicológicas representam 34% dos casos de violência de gênero contra mulheres indígenas em Roraima

Agressões psicológicas representam 34% dos casos de violência de gênero contra mulheres indígenas em Roraima
Ente janeiro de 2022 e abril de 2023, foram registrados 842 casos contra mulheres indígenas, entre violências psicológicas, sexuais, físicas, patrimoniais e morais – Foto: Katie Mähler/Apib

Ameaças, perseguições, perturbações, chantagens e constrangimentos são algumas das atitudes enquadradas no conceito de violência psicológica. Foram esses tipos de casos que as mulheres indígenas de Roraima mais denunciaram entre janeiro de 2022 e abril de 2023. Os dados recentes foram obtidos com exclusividade junto aos boletins de ocorrência (BOs) da Polícia Civil do Estado e analisados pela InfoAmazonia.

Ao todo, neste período foram registrados 842 casos contra mulheres indígenas, entre violências psicológicas, sexuais, físicas, patrimoniais e morais. As agressões psicológicas aparecem em maior número, com 288 registros, em seguida vêm violência patrimonial, com 205, violência sexual, com 141 casos, violência moral, com 111 registros e por último violência física, com 97 casos.

Entre os 288 registros de violência psicológica, 170 foram enquadrados na Lei Maria da Penha, ou seja, ocorreram dentro do ambiente doméstico, representando 59% dos casos. Em números gerais, considerando todos os tipos de violência, foram 286 casos enquadrados na Lei Maria da Penha e 52 mulheres registraram de duas a seis violências neste período.

Considerando os 288 casos de agressões psicológicas que ocorreram em ambiente doméstico e os que ocorreram fora, 261 deles foram registrados como ameaças, 12 como perseguição e sete como violação de domicílio.

A historiadora, mestra e pesquisadora do Observatório de Violência de Gênero da Universidade Federal de Roraima (UFRR) Mávera Macuxi explica que a violência psicológica é caracterizada por sua escalada, que começa na forma de controle e manipulação e chega até a agressão física.

“A violência psicológica não envolve ações físicas, mas agride o emocional das mulheres. São ameaças aos filhos, à família. São violências que usam a humilhação ou constrangimento dentro do ciclo social, que causam impacto e abalam fortemente as mulheres indígenas. As vítimas acabam desenvolvendo outros quadros emocionais negativos como depressão, ansiedade, isolamento”, diz.

De acordo com os dados, o maior número de violências psicológicas denunciadas e registradas em BOs está entre as mulheres indígenas solteiras, com idade entre 24 e 34 anos, com ensino fundamental incompleto e que ocorrem fora de aldeias cometidas por parceiros indígenas.

A doutora Luziene Parnaíba, professora do curso de Ciências Sociais da UFRR e consultora científica desta reportagem, afirma que existe uma falta de compreensão dos danos dessa violência.

“Existe uma espécie de falta de reconhecimento sobre o quão danosa pode ser a prática da violência psicológica. A pessoa que está sofrendo agressão psicológica permanente vai ter muita dificuldade de estabelecer relações saudáveis, é uma pessoa que pode desenvolver outras doenças em função dessa sobrecarga da violência emocional.”

Parnaíba defende que o acesso à informação e educação é o maior diferencial para que mulheres consigam entender e denunciar abusos psicológicos. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostraram que o número de indígenas com acesso ao ensino superior saltou de 9.764 para 46.252, entre 2011 e 2021.

“É com mais acesso ao conhecimento, à informação que essas populações realmente vão entender o que de fato se processa no interior das suas vidas e vão conseguir fazer o ponto de virada. As mulheres indígenas precisam estar nos espaços onde é possível discutir esses problemas”, afirmou.

Obstáculos para denúncias

O cenário de acesso aos locais de denúncia na região não é dos melhores. O Estado de Roraima é o único da Amazônia Legal que possui apenas uma delegacia especializada em crimes contra a mulher, na capital Boa Vista.

A pesquisadora com mestrado em Sociedade e Fronteiras pela Universidade Federal de Roraima, Mávera Macuxi, que nasceu na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, estudou no território da infância até a adolescência. Desde a graduação em história, ela se interessa pelo tema da violência de gênero e atualmente desenvolve pesquisa sobre a aplicação da Lei Maria da Penha nos casos de crimes praticados especificamente contra mulheres indígenas. Ela diz que os deslocamentos para efetivação das denúncias e a falta de preparo para acolher às vítimas e ter um atendimento diferenciado são alguns dos obstáculos que ainda devem ser enfrentados.

“A Lei Maria da Penha é uma lei histórica e importante, mas no caso específico para mulheres indígenas a aplicação dela é muito mais difícil. Nós só temos uma delegacia especializada e o atendimento específico para mulheres indígenas não existe. O fator da língua e da distância, por exemplo, precisa ser considerado. Essa perspectiva de raça e classe não é feita. A gente percebe na oratória que essas perspectivas diferentes não ocorrem”, argumenta.

A pesquisadora cita em sua pesquisa que o acesso às bebidas alcoólicas também é um dos fatores principais para a mudança de comportamento entre os homens agressores indígenas.

A advogada Andressa Pataxó, representante jurídica da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), avalia que não existe um recorte que contemple as mulheres indígenas dentro das políticas públicas de combate à violência de gênero.

No contexto da mulher indígena urbana, Andreassa observa que a questão da barreira linguística pode representar um obstáculo “na vida de quem sofre esse tipo de violência”.

Advogada diz que distâncias das delegacias e falta de alternativas para realização das denúncias são barreiras importantes – Foto: Hellen Loures/Cimi

Já sobre as dificuldades das mulheres indígenas que vivem em aldeia, a advogada Pataxó concorda que as distâncias das delegacias e a falta de alternativas para realização das denúncias são barreiras importantes.

“Muitas vezes essas mulheres não têm meios para se locomover, se alimentar durante o trajeto até a cidade ou com quem deixar seus filhos quando estão fora de suas casas. Além disso, sua ausência pode despertar a desconfiança do agressor e iniciar um novo ciclo de violência”, explica.

Andressa lembra que entre as dificuldades para denunciar, o tratamento da mulher dentro da delegacia é uma das principais queixas de quem tenta registrar um BO. No caso das mulheres indígenas, a adaptação da lei e dos conhecimentos dos direitos para a língua de cada um dos povos é também um desafio. Em 2022, a Apib lançou um dossiê com reflexões e dados sobre criminalização indígena, em que também trabalha a temática da violência de gênero.

“No dossiê, trazemos relatos de mulheres indígenas que não sabiam o que é uma Delegacia da Mulher e que consideram a Lei Maria da Penha falha em protegê-las. Não podemos esquecer da discriminação que essas mulheres sofrem nos postos de atendimento. Já fragilizadas pela violência, como esperar que possam transmitir o crime do qual são vítimas em uma língua que desconhecem ou não dominam?”, questiona Andressa.

Com tantos obstáculos, a subnotificação é uma realidade na coleta desses dados a partir dos BOs registrados na Polícia Civil de Roraima e a amostragem analisada pela reportagem não representa o total das violências, que podem ser bem maiores.

“Isso nos leva a refletir sobre a importância e necessidade de se registrar, visto que é um desafio realizar algum atendimento, dar andamento em determinada demanda, sem informações que possam embasar. São inúmeras as violências sofridas pelas mulheres indígenas em todo o país, seja em seus territórios, seja para com seus filhos ou com seus corpos”, diz a advogada.

Denúncias e Funai

Uma desinformação propagada entre as mulheres indígenas é a de que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) seria a responsável por registrar denúncias de violência de gênero, o que não é verdade. O órgão é responsável por demarcar, fiscalizar e proteger territórios indígenas. Também é responsável por fazer articulações com outros órgãos governamentais para garantia dos direitos dos povos originários no Brasil.

Em Roraima, a delegacia de atendimento especializado fica na Casa da Mulher Brasileira, na Rua Uraricoera, bairro São Vicente, em Boa Vista. O local funciona 24h. Para ligações, o número é (95) 98413-8952. Além de uma delegacia especializada, outras 11 delegacias no interior do Estado também recebem denúncias de violações de gênero.

Em Roraima, delegacia de atendimento especializado fica na Casa da Mulher Brasileira, na Rua Uraricoera, bairro São Vicente, em Boa Vista – Foto: Divulgação/Presidência da República

Para Andressa Pataxó, a ausência dessas informações sobre como fazer as denúncias dentro dos territórios indígenas indica a necessidade de construir acessos.

“Toda mulher indígena que sofre violência pode denunciar na delegacia de polícia. Essas informações [sobre as denúncias] são básicas e a falta delas explicita como o Estado ignorou a população indígena quando construiu essas políticas. É preciso que esses protocolos sejam revistos com a participação de mulheres”, afirma.

Normativas próprias

O Conselho Indígena de Roraima (CIR) tem uma secretaria voltada para mulheres, que realiza formações e reuniões para avaliar caso a caso. A organização existe desde a década de 1970 e representa hoje cerca de 30 mil indígenas, presentes nas 261 comunidades associadas. Com a ausência do Estado, indígenas de comunidades em Roraima aplicam, muitas vezes, suas próprias punições para casos de violência contra mulheres.

Nos casos em que as agressões são feitas por homens indígenas, eles são retirados temporariamente de suas aldeias e recebem formação para compreensão dos direitos das mulheres. O coordenador-geral do CIR, Edinho Macuxi, explica que quando as normas internas não funcionam, os indígenas optam por fazer as denúncias formais aos órgãos do governo.

“A gente impõe restrições conforme o grau de crime praticado. Nos casos graves, eles são levados para uma comunidade distante, longe da família, a pessoa fica sob responsabilidade de outra comunidade, cumprindo seu dever conforme determinado pela sua comunidade. Não pode sair, não pode beber, não pode farrear, são várias condicionantes”, explica Edinho.

Edinho afirma que as medidas foram necessárias porque as leis brasileiras não contemplam as especificidades indígenas. Nesse sistema, são as próprias mulheres que reunidas decidem as punições aos homens.

Em alguns casos, famílias das mulheres que sofreram agressão se revoltam e tentam punir agressores, o que pode causar a revolta da família do possível agressor, criando um verdadeiro conflito entre os indígenas, diz coordenador-geral do CIR – Foto: Reprodução

Dos 546 casos de agressões de gênero contra as mulheres indígenas em Roraima analisados pela InfoAmazonia, 291 deles são homens indígenas, ou seja, 53% dos acusados.

“Nós acreditamos muito no empoderamento das mulheres de darem lições, para que os homens pensem mil vezes antes de tocar ou bater numa mulher. O que vemos é que é importante fortalecer os movimentos das mulheres, para que elas possam tomar as decisões coletivas e conduzir essas punições. Não queremos só denunciar e punir, precisamos valorizar e respeitar os regimentos das comunidades indígenas e fortalecer o protagonismo delas nas ações de gestão do controle desses crimes”, afirma Edinho.

Ainda de acordo com Edinho, tais providências servem para evitar escaladas de violências dentro das comunidades. Isso porque em alguns casos as famílias das mulheres que sofreram agressão se revoltam e tentam punir os agressores, o que pode causar a revolta da família do possível agressor, criando um verdadeiro conflito entre os indígenas. A situação ainda piora quando as famílias são de comunidades diferentes. Neste sentido, o CIR desenvolve uma mediação dos casos.

“A gente vê que dessa forma tem melhorado a vida das pessoas e que depois eles assumem a responsabilidade de seguir sua vida. Se você coloca um indígena na prisão porque bateu na esposa, não vai resolver a situação de violência. O pai da mulher está com raiva, mas o pai do homem também fica revoltado, então o clima de violência na comunidade fica até maior e isso gera mais problemas”, conta.

O artigo 231 da Constituição Federal garante aos povos indígenas o direito à sua própria “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”. A pesquisadora Mávera Macuxi afirma que as medidas tomadas pelos indígenas são válidas e devem ser consideradas, é o chamado direito consuetudinário

O direito consuetudinário é uma série de costumes, práticas e crenças que são aceitos como regras obrigatórias de conduta pelos povos indígenas e comunidades locais. O direito consuetudinário é uma parte intrínseca dos seus sistemas sociais e econômicos e modos de vida. Ela entende que as normas são de correção e não punição.

“É uma lógica importante feita pela conciliação. São normas novas que estão sendo implementadas de dois anos para cá e que são resultado do avanço dessas conversas sobre o direito das mulheres, as denúncias estão sendo mais expostas, o tema está sendo debatido com mais frequência nas comunidades e foi uma reivindicação das mulheres”, explica.

Mulheres indígenas no topo

A doutora Luziene Parnaíba afirma que o avanço da presença das mulheres indígenas nos setores de poder está estimulando o debate público. Para ela, isso significa um ponto de mudança quando se fala nos direitos das mulheres no Brasil. O país tem, pela primeira vez, uma mulher indígena como ministra: Sônia Guajajara ocupa o cargo do Ministério dos Povos Indígenas.

“O que estamos vivendo é um ponto de virada para pensarmos nas problemáticas das mulheres indígenas. Eu estava lembrando da COP do ano passado, nós vimos que foi a maior comitiva indígena de mulheres dos últimos anos. Nos microespaços de avanço de poder, existe uma escalada importante desse grupo. Então, pensando numa série histórica, a gente percebe que elas estão acessando mais espaços”, analisa Luziene.

Brasil tem pela primeira vez uma mulher indígena presidindo o órgão indigenista do governo: Joênia Wapichana, mulher nascida na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima – Foto: Mídia Ninja

Nas eleições de 2022, as candidaturas de mulheres indígenas cresceram 75% em relação às eleições gerais de 2018 e representaram 46% do total (182) de candidaturas indígenas. O aumento do protagonismo feminino dentro do movimento indígena é uma conversa permanente e em cada espaço elas tentam se reafirmar mais.

Além da ministra Sônia, eleita deputada federal (Psol-SP), e da deputada Célia Xakriabá, eleita deputada (Psol-MG), o Brasil tem pela primeira vez uma mulher indígena presidindo o órgão indigenista do governo: Joênia Wapichana, mulher nascida na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.

Mávera Macuxi lembra que com esses avanços também surgem outras violências, dessa vez política. “É interessante também considerar que as violências políticas estão alcançando essas mulheres e que muitas ameaças partem disso. Então temos a necessidade de olhar para elas com carinho, de dar suporte para que esse avanço continue”, defende.

A reportagem procurou o governo de Roraima e questionou sobre políticas para redução da violência de gênero no Estado, considerando mulheres indígenas. Também questionou se existem planos para implementação de novas delegacias especializadas. Não houve resposta.

Esta reportagem é parte do Laboratório InfoAmazonia de Geojornalismo, realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira, para promover e difundir o conhecimento científico e análise de dados geográficos na produção jornalística

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https://oanalitico.com.br/destaques/2023/08/12/sociedade-brasileira-de-pediatria-pede-em-carta-de-manaus-atencao-para-a-saude-de-criancas-e-jovens-indigenas/

Por Redação

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